Uma reinterpretação das tendências
Filosofar sobre RPG sempre foi um dos meus passatempos favoritos, mas obviamente algumas coisas chamavam mais minha atenção que outras. A tendência era algo intrigante, principalmente por ser muito abstrata dentro de jogo e ao mesmo tempo poder ser utilizada fora dele para representar diversas figuras da sociedade. Minha atenção se voltou a ela, com foco no entendimento, para descobrir formas de deixar o que era abstrato de lado com parâmetros bem definidos, mas pra entender eu aprofundei e aprofundar me fez repensar, recriar, reinterpretar. Trago este artigo como uma abordagem diferente, uma reinterpretação.
Contextualização
A Tendência é uma categorização usada para analisar ações e, a partir delas, interpretar a disposição comportamental de uma personalidade ou sociedade. É utilizada para direcionar que tipo de ação alguém deveria ou não tomar. Esta estrutura faz parte do RPG desde sua origem, tendo sido inserida no D&D Clássico apenas com o eixo ético (leal, neutro e caótico). Posteriormente na versão avançada, o AD&D, foi introduzido o eixo moral (bom, neutro e mau), fazendo com que se originasse uma matriz com nove combinações. Esta matriz foi passada adiante nas versões seguintes do sistema e herdada por muitos jogos originados a partir delas, porém, com o tempo o uso tem se tornado cada vez menor com a diminuição do uso mecânico e atualmente existem em sistemas mais novos que já abandonam o uso desta ferramenta. Possivelmente você já viu em algum jogo o poder “Destruir o mal” de um paladino, este é um uso mecânico, pois faz com que uma habilidade só possa ser usada mediante a condições relacionadas ao uso da tendência, há inclusive casos mais limitadores como “Ladinos devem sempre ser caóticos”, estas limitações motivaram uma reavaliação deste conceito e possivelmente o movimento para removê-lo. Mas te convido a refletir comigo sobre este conceito e pensar em formas de ainda utilizá-lo.
Esta é a representação habitual que temos da matriz de tendência com os 9 setores
Minha filosofia no eixo ético
O primeiro contato estruturado que tive com eixo ético se deu pelo RPG, os termos leal e caótico não eram comuns para meu dia a dia, pelo menos neste uso. A reflexão começa por eles, entender o que é realmente cada um para utilizá-los de maneira correta em jogo. Leal, indiscutivelmente, está ligado ao cumprimento de regras e leis enquanto o caótico se destina ao oposto disso. Isto é o que vemos no geral, mas parando pra pensar cheguei à conclusão de que a ausência da preocupação com as regras estaria mais ligada a neutralidade e que talvez o caminho oposto disso não fosse o descumprimento das mesmas, mas um motivo para descumprir. Pense no amor e ódio, ambos estão em um eixo, mas a ausência de amor não é o ódio em si, mas sim a indiferença, assim como para o ódio. Observando por este prisma, tente pensar no personagem mais ordeiro (leal) que você conhece, na minha mente eu tenho Ned Stark, de Game of Thrones. Pense o que faria este personagem agir completamente contra sua tendência ordeira, em minha mente só vem uma coisa, o amor pela sua família.
Spoiler de Game of Thrones
Isto fica claro em cena quando vimos que [Jon Snow](https://wiki.geloefogo.com/index.php/Jon_Snow) na verdade é seu sobrinho, em vez de seu filho. Quando Ned reencontra sua irmã [Lyanna Stark](https://wiki.geloefogo.com/index.php/Lyanna_Stark) e descobre que ela acabou de dar a luz a um filho de [Rhaegar Targaryen](https://wiki.geloefogo.com/index.php/Rhaegar_Targaryen), ele sabia que o recém nascido estava com os dias contados, uma vez que seria um herdeiro de alguém que seria tratado como um traidor. Com isso em mente, Ned engoliu seu orgulho e retornou para casa com o bebê alegando ser seu próprio filho, o que soou como uma quebra de um acordo, uma vez que Ned era casado.O amor é um sentimento, uma emoção. Pensando em uma quebra total da ordem, faz muito sentido vinculá-la a uma ideia de razão e emoção, ou lógica e sentimento, até porque o caminho do cumprimento da lei é um caminho racional. Esta foi a conclusão que cheguei neste eixo, ele se trata de uma oposição entre o pensar e o sentir.
Minha filosofia no eixo moral
Passamos a nossa vida inteira tendo contato com narrativas sobre bem e mal, seja em livros, filmes, séries e até nos contatos com religião. Mas você já tentou definir o bem e o mal? Depois que comecei a jogar RPG eu refleti sobre isso e a resposta não me veio em mente tão rápido quanto eu acreditava que viria. o conceito acaba muito ligado ao arquétipo do herói e do vilão, seria a vilania e o antagonismo o mal em si? O herói é sempre bom, mas todo bem é heróico? Complexo, mas entendo que em ambas as perguntas a resposta é não. Em minha reflexão eu cheguei à conclusão que o bem está diretamente ligado ao altruísmo e que ser bom está diretamente ligado em pensar no próximo antes de pensar em si. Enquanto o mal cai para o caminho oposto, não de não pensar nos outros, mas de priorizar a si mesmo. O mal seria o egoísmo. Assim como o eixo ético, o eixo moral tem a neutralidade ao seu centro, onde nela há a ausência de ambos. Não estou preocupado com os demais, caio para neutralidade, e o mesmo vale se não penso só em mim o tempo todo. Entendo que alguém se torna mal a partir do momento que prioriza a si mesmo e/ou ao seu grupo tanto a ponto de prejudicar uma ou mais pessoas. Mas apesar de toda a reflexão, um ponto que gosto sempre de pensar é o Ying-Yang, dentro de cada bem vai haver o mal e dentro do mal sempre vai haver o bem.
O Yin-yang, dentro de cada bem há o mal e dentro de cada mal há o bem
Pontos a se pensar
No entorno do tema, há pontos que gostaria de trazer para reflexão.
O caos precisa sempre se opor às regras?
Reflita através da ideia apresentada, faz sentido que esta oposição às regras seja vista com frequência? Eu entendo que não. Um personagem caótico seguirá o caminho mais instintivo, talvez até o mais emocionante. Aqueles que ainda optarem pela lógica, enxergarão soluções de maneira alternativa, colocando sempre seus prazeres pessoais à frente dos regulamentos. O caos pode ir na mesma direção da ordem, quando a emoção seguir a razão.
Personagens maus em jogo
Eu, particularmente, gosto da ideia de ver personagens maus em jogo, assim como crio deuses para campanhas que são maus. Acho interessante mostrar como eles têm uma ideia deturpada e que nem sempre são malignos conscientemente, alguns acham que estão fazendo o certo, outros só evitam pensar nisso. Tudo agrega para uma história interessante e complexa e a grande conquista para mim nisso tudo é o personagem se conscientizar disso durante a história e, quem sabe, mudar.
Seguidores enganados e deuses com diferentes tendências
É possível que um deus tenha diferentes tendências? Eu entendo que sim, a partir do ponto de vista de quem o cultua. Nas mitologias gregas e nórdicas havia conceitos sobre a guerra e o quanto ela glorifica um povo. Qual seria a visão que o povo tinha, por exemplo, ao cultuar o deus Ares (mitologia grega), possivelmente uma visão de respeito, enquanto seus inimigos deviam o enxergá-lo de maneira assustadora.
O equilíbrio do bem-estar do mundo de jogo
Em representações ficcionais costuma-se existir um conceito bem trabalhado de dualidade. Sempre haverá personagens bons em dosagem similar à quantidade de personagens maus, seja em quantidade ou poder. A mesma visão pode ser vista a partir do eixo moral, os racionais e os emocionais, não se opondo, mas coexistindo. Utilizar desta categorização permite equilibrar e dar estrutura de um cenário nessa pegada.
Lados similares se opondo
Por mais que estejam categorizados de forma igual ou parecida, diferentes personagens podem vir a se opor. Diferentes interpretações, objetivos, motivações, dentre outras coisas, podem ocasionar essa oposição. É interessante ter em mente que os personagens não vão necessariamente se ajudar ou se rivalizar por conta da tendência.
Ações malignas, não ações estúpidas
Um personagem mau que se junta a desconhecidos pode não ter interesse algum no bem estar deles, mas claramente ele pode se beneficiar da sobrevivencia destes indivíduos. Não há sentido algum em um personagem que se categoriza como mau prejudicar um aliado sem que hajam interesses para isso. Interpretando personagens maus, foque suas energias em “tirar da jogada” somente aqueles que são prejudiciais ou claramente inúteis aos seus objetivos. Salve aliados desde que estas alianças te sirvam.
Como aplicar isso em mesa?
Hora de pôr o que discutimos em prática
Para jogadores
Use a tendência como bússola, não como algema
Ela deve guiar seu personagem, mas não impedi-lo de evoluir ou agir fora da curva em momentos intensos. Um personagem leal pode quebrar regras por amor, ou um personagem mau pode agir de forma altruísta, com segundas intenções. O importante é sempre ter uma ressaca moral (um momento de desconforto e reflexão ética), após o ocorrindo onde o personagem fica pensativo sobre o que fez e se autoavalia sobre evitar fazê-lo novamente ou abraçar de vez a mudança.
Analise se suas ações realmente correspondem à sua tendência
Refletir após momentos de tensão pode trazer interpretações valiosas sobre o comportamento do personagem. As decisões tomadas correspondiam à tendência dele? Caso não, o arrependimento faz sentido? O que determina de verdade a tendência não é uma combinação de duas palavras, e sim, ações.
Para mestres
Crie testes morais e éticos, não só desafios mecânicos
Apresente situações onde todas as escolhas têm consequências. Deixar prisioneiros para trás para cumprir a missão? Queimar a plantação de um vilarejo para evitar que o inimigo use os mantimentos? Essas decisões revelam mais do personagem do que o combate.
Permita mudança de tendência ao longo da campanha
Assim como as pessoas mudam, personagens mudam. Um caótico pode aprender o valor da ordem. Um mau pode encontrar redenção. Não puna jogadores por isso, use como ferramenta de evolução da ficção.
Evite regras engessadas
Se for usar tendência mecanicamente (como em magias ou restrições de classe), seja flexível e contextualize. Às vezes, um personagem é considerado mau por um grupo, mas age com compaixão. A tendência é ponto de vista, não sentença absoluta.
Dê feedback sobre a tendência
Ao invés de utilizar a tendência como forma de impedir que o jogador tome uma ação com seu personagem, permita que a ação ocorra, mas ao acabar a cena, levante a indagação, incentive a reflexão e deixe que o jogador reflita.
Conclusão
Tendências são ótimas ferramentas pra jogos narrativos, mas se você curte assim como eu, curte jogos voltados pra desafio, talvez você não tenha tantos motivos pra utilizar. Muitos dos questionamentos que fazemos poderiam facilmente ser ignorados com a remoção dessa categorização, deixando tudo mais genérico e abstrato, sem amarras. Pelo menos dê “o braço a torcer” e concorde que é divertido pensar sobre esses tópicos. Eu persisto utilizando porque gosto, analise se faz sentido para você e seu grupo.